domingo, 11 de abril de 2010

A Construção do novo Mundo e o Imaginário Europeu



Se o outro nos parece estranho nos dias de hoje, que nos há de pensar em 1500?

Conceitos como o bem e o mal, o céu e a terra, Deus e o Diabo, paraíso e inferno, estavam bastante presentes na vida dos homens europeus do século XVI. A igreja e seus dogmas representavam um papel de extrema importância na cultura dessa sociedade, na qual, “pesavam sobre seus fardos” uma relação estreita para com Deus, intermediada pela “casta política da Igreja católica” cujo poder, enquanto instituição, transcendia a esfera do religioso. A tutela da igreja criava mecanismos de controle para esta sociedade fundamentada na recriação do imaginário europeu, instalando-se nas terras recém descobertas nas Américas.

O tempo cronológico desconhece as transformações culturais. O homem do século XVI estava mergulhado no que a Idade Média tinha de mais poderoso: “a cultura”. Homens detentores de conhecimento científico se rendiam às quimeras mitológicas que assombravam os imaginários. A Idade Média e a Idade Moderna não se rompiam nas grandes navegações, mas se confundiam nas práticas cotidianas, estranhando o que era diferente.

Se por um lado havia todo o aparato para promover a empresa comercial das grandes navegações, por outro havia um território novo, cheio de “mistérios”. A base para a construção da identidade de uma terra chamada Brasil começava a se fundamentar desta forma.

Portugal e Espanha, em particular, serão os alvos deste trabalho que buscará um entendimento mais abrangente sobre a “construção do novo mundo no imaginário europeu”. Partindo da tese de Laura de Mello e Souza, que ao abordar o tema, analisará relatos feitos por um cronista, que nem sempre esteve na colônia portuguesa das Américas, mas que só por ouvir certas histórias, criava uma pseudo – realidade a partir de estórias ratificadas pela Igreja. A reboque será feito um paralelo com alguns autores que em outras épocas discutiram sobre o assunto, onde se dialogará com algumas fontes.

Não se rompe com o passado da noite para o dia, nem tão pouco com antigos valores e práticas, parafraseando um ditado popular que diz : “o homem só encontra o que procura”. Os europeus em um primeiro momento, não encontraram nada que já não tivesse trazido da Europa. Em outras palavras, este pensamento vem confirmar a análise feita por Souza ao debruçar olhares sobre os trabalhos de Leopardi, quando ao falar do imaginário europeu, refere-se à incapacidade destes em reconhecer o outro.

A visão de céu e inferno criada por Frei Vicente ao explicar o processo de assimilação do nome Brasil, ao invés de terra de santa Cruz, pode explicar de forma sucinta como o europeu lidava com o que não lhe era conhecido. O mundo limitado passara a ganhar um novo formato. Caio Prado, em seus estudos, acreditava ser o Brasil uma cópia mal feita de Portugal, ao analisar questões como burocracia e colonização. É inegável parte de sua afirmação, pois aqueles homens não só eram produtos do seu tempo, como também de seu meio. Traziam toda uma bagagem, misturando-se a valores autóctones, criando assim uma organização diferente de todas as outras nas colônias.

O que se pode perceber a partir das leituras feitas no trabalho de Mello são dois pontos importantes, que servirão para explicar a colonização das terras recém descobertas nas Américas. O primeiro seria a possibilidade de extrair toda riqueza que estas terras pudessem prover. O segundo diz respeito a necessidade de civilizar esses nativos, ditos bárbaros, de costumes estranhos e que nunca tivera conhecimento da palavra de Deus. Havia aí a necessidade de levar a esses nativos o conhecimento da “verdade cristã”. Numa sociedade onde tudo se explicava pela relação com Deus, como era no século XVI, o que fugia a essa perspectiva só poderia ser explicado como sendo do Diabo.

A Terra de Santa Cruz, como fora batizada pelos portugueses quando aqui chegaram, era segundo Gandavo e Bradônio, de fauna abundante e de flora exuberante. Segundo a autora Brandônio, ao referir-se a Colônia portuguesa, esta era como sendo ao contrário dos “Campos Elíseos”, a verdadeira terra que corria leite.

Pelo menos durante todo século XVI e XVII, a visão “edênica” a respeito das terras descobertas foi predominante nas crônicas de viajantes, de escritores e também dos que, através destes trabalhos, procuravam divulgar as novas terras, a fim de criar um imaginário “especulativo e imobiliário”. Deus era o criador destas terras, então este seria o paraíso. Entretanto as crônicas de Jaboatão, no século XVIII, marcaram uma segunda fase a respeito desta visão de paraíso. Segundo a autora, o que se passou a ocorrer a partir do século XVIII foi uma negativa na forma de observar a Colônia de Portugal na América. A visão detratora passou a ser a outra fase do paraíso. Tudo que fugia a métrica européia de paraíso era então o inferno. Ao que parece os europeus trouxeram consigo este paradoxo. Mas a questão que se deve formular é quem começou a propagar tal fato? E sob quais questões a historiografia do século XVIII analisava tal efeito?

Apesar de acreditar que tal visão, (negação ao paraíso), teria sido influenciada pelo movimento Iluminista ocorrido na Europa, em particular, na França, este trabalho não se propõe discutir esta especificidade da história, ficando então para uma nova ordem, uma discussão poderá ir além das “espumas criadas pelas ondas ao bater nos rochedos”.

As práticas de antropofagismo indígena representavam uma enorme negativa, o que para alguns cronistas rompia com a visão edênica das terras recém-descobertas. Souza faz referencias a Navarro, Nóbrega, Jaboatão e Jerônimo Rodrigues , entre outros, que descrevem de forma bastante detalhada a “sede” dos índios por carne humana. Tais práticas também foram observadas pelo padre Azpicueta Navarro ao dizer, segundo as palavras de Laura de Mello, que os Jesuítas escreviam muito sobre a prática do canibalismo.

O discurso de “degração”, feito ao homem da terra, não ficava limitado aos rituais de sacrifício. Outros elementos associavam-se, gerando uma numerosa lista de pecados além do antropofagismo – o incesto, poligamia, nudez, preguiça, cobiça, paganismo. Utilizando os relatos de padre Jerônimo Rodrigues Souza, este nos explicita que havia muitos homens para várias mulheres, assim como muitas mulheres para vários homens. No caso dos homens, estes se apropriavam inclusive das suas filhas e netas como mulheres. Outra análise feita seria, a cerca da preguiça que, debruçando olhares sobre os trabalhos de Prado, remete a uma sombria análise a respeito dos gentios. Em relação a cobiça, esta não caberia ao “negro” da terra, mas sim ao próprio europeu que, ao adentrar estas terras, seria corrompido por ela e sofreria pelo seu pecado.

As análises feitas por vários cronistas da época, e até mesmo pensadores mais contemporâneos como Kant, por exemplo, trazem a lume uma discussão referente à “bestialidade” dos gentios. Tratados como feras, serviram de alimento para o imaginário europeu. Se em 1555 o padre José de Anchieta se comparava a um veterinário, então para ele os índios americanos não passavam de animais. A autora continua avançando, dizendo que todos estes fatores somados sobre o homem da terra deram uma terceira concepção européia a respeito das terras americanas. A permissividade destes homens, devido as suas práticas, levaria o demônio a atuar livremente por estas terras. Uma vez expulso da Europa, devido à ação inquietante da Igreja católica que, segundo a autora, eficazmente cristianizou o continente e se fez vitoriosa durante a alta Idade media. Ao citar D. Rodrigo, Souza procurou embasamento para marcar a terceira fase a respeito do imaginário europeu.
(...) por todo o trajeto, procurou o demônio atrapalhar a viajem; não tendo sucesso, ‘se meteu em uma baleia e tão bravamente nos seguiu pela estreita canoa (...) lancei-lhe um Agnus Dei. Só assim a baleia (demônio) se afastou.
De acordo com estes relatos o demônio poderia estar presente não somente nas práticas indígenas, mas também no comportamento dos animais e nos fenômenos da natureza. Pragas de formigas, pulgas e outros insetos poderiam representar uma reação opressora sobre aqueles homens de Deus que, investidos do poder divino, estariam ali para combater o mal e evangelizar os “bárbaros”. Na passagem de Frei Vicente, ao celebrar uma missa, “o Satanás se fez presente transformando um belo dia claro em uma tempestade de raios e relâmpagos, que não só molhou os clérigos como também derrubou a imagem de Nossa Senhora ao chão”. No dia seguinte a este fato, segue o relato, Satanás fez acumular uma praga de moscas que assolou completamente o local.

Podemos então perceber que a visão edênica se dá pela natureza exótica que, em um primeiro momento, teria sido as Índias. Já a visão de inferno ocorre através dos fenômenos da natureza. É nessa dicotomia Céu e Inferno que se criou a necessidade de um Purgatório nas colônias européias das Américas. No século XVI, segundo Souza, o juiz demonólogo De Lancre via a incerteza, o afastamento e a confiança no abstrato entre outros como elementos capazes de provocar um efeito de afastamento do homem com Deus. De certa maneira o mar foi o objeto transformador nesse processo imaginário. Não que a idéia de Purgatório fosse algo de novo no consciente do europeu, mas segundo a autora, houve uma reformulação da “idéia de Purgatório” que de uma forma ou de outra, se adaptou muito bem a realidade das “terras de aça”. Como já observamos, tal visão se deu sob vários aspectos e em vários períodos. O “mar demoníaco” de De lancre no século XVI, sob condições bem semelhantes, será o “mar demoníaco de Camões do século XVIII, que fará do marinheiro o “prisioneiro da passagem”. A visão de mundo assombrado das colônias americanas lidavam com o mar como uma travessia para o além. Conscientemente ou não, esta era uma visão dos povos de origem africana, com quais, os europeus já tinha tido contato. As dificuldades passadas nas colônias pela vida rude não só reproduzia o imaginário europeu, como servia de castigo para os pecadores.

A visão de purgatório vai servir como uma solução para dois principais aspectos. O primeiro teria sido o social, como por exemplo, para onde iriam os condenados ao degredo Português. Para os espanhóis a colônia foi o paraíso local capaz de purificar as almas. As colônias européias nas Américas passaram a ser o lugar dos renegados. O segundo fora o econômico, já que a colônia precisava, acima de tudo, produzir para a metrópole. Então coube a esse degredado ser a mão-de-obra necessária para que homens na forma de trabalhadores, em sua maioria compulsórios, pudessem se purificar dos seus pecados. O discurso utilizado foi de grande eficiência, capaz de criar um equilíbrio entre metrópole e colônia.

As três visões sobre o imaginário europeu a respeito das terras portuguesas e espanholas nas Américas foram produtos de um imaginário que estava intrinsecamente influenciado por um aculturamento do imaginário acidental. Tendo sido bastante eficaz na construção do “Novo Mundo”.

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